RESENHA: OS DOIS PAPAS

Em um clássico acerca da história francesa do século XIX seu autor cunhou uma frase que hoje se tornou popular. A História nunca se repete, a primeira vez é uma tragédia, a segunda, uma farsa. Sendo assim, temos um ataque a uma produtora de filmes de humor como o que ocorrera com o semanário que satirizou a religião islâmica na França; uma nova Ação Integralista Brasileira (AIB) liderada por um oficial da PM da reserva sem qualquer ideólogo ou referência a intelectuais como Plínio Salgado ou Cassiano Ricardo; uma macroeconomia neoliberal que teve no Chile seu exemplo maior, país que justamente agora passa por graves problemas sociais como o que ocorre com os aposentados e pensionistas e que faz, para dizer o mínimo, economistas de cepa liberal recuarem para uma heterodoxia, como um Armínio Fraga e onde um Paulo Guedes viu que a sua idealização de mercado não corresponde ao país que não conhece.
A polarização é a marca ainda de
nosso tempo. A sensação que o clima eleitoral ainda não acabou. É verdadeiro
dizer que alguns ânimos arrefeceram, setores que não se colocavam nos extremos
procuram uma saída. A pauta do atual governo conseguiu, com êxito, colocar
marcas em gestões passadas como a criada “ideologia de gênero” ou a retomada de
verbetes anacrônicos, como o etéreo e sem sentido “comunista”. Por sua vez, por
mais que o governo queira trilhar por um caminho de derruição da Constituição
de 1988 - sua maior meta programática -, segue um caminho tateante e tem dentro
de si a sua própria oposição, como exposto na briga do partido que elegeu o
presidente com o próprio. Porém, não há nada de novo no front do campo do maior
partido da oposição. Como no futebol, houve uma linha de passe. “Golpe” tocou
para “Fora Temer” que jogou a pelota para “Ele, não!” que jogou na área para o “Lula
Livre!”. Como já apontado, a história não se repete. O sebastianismo português
do século XVII acabou por se repetir no século XXI no Brasil da mesma forma, o
regenerador e guia genial dos povos é uma ideia sem eco na sociedade, apesar da
presença de crentes que entendem que tudo passará com ele lá. Portugal acabou
por ficar preso a esse imaginário e submergiu no contexto internacional.
OPTaram por isso.
Como reza a lenda, Galileu teria
falado de forma sussurrante que a Terra se move. Joaquim Nabuco escreveu em
lindas páginas que há um tempo quase imperceptível, o tempo da Terra, na
leitura que fez da Providência de Alexis de Tocqueville. As coisas se movem. O
carnaval do Rio, esvaziado todo ano pelo poder municipal que o constrange esse
ano com horários estapafúrdios e limites geográficos à folia é um teste para a mobilidade
da sociedade. O combalido e sempre criticado Congresso, retrato da sociedade
que o elegeu, conseguiu grandes avanços nos recuos delirantes do Executivo;
fora as decisões do alvo preferencial que mora no governo e na sociedade: o
Supremo Tribunal Federal, que colocou freios civilizatórios sobre projetos de
perspectiva excludente e/ou autoritária do governo federal.
Qual a saída? Não é o aeroporto.
É a trincheira mais difícil da atual conjuntura: ouvir o outro – mesmo que lhe
seja estranho – e falar. Ouvir. Falar. Diálogo. Para o filósofo J. Habermas a
ação comunicativa seria uma forma de se antepor aos desvarios de Estados de
perfil autoritário, o caminho para o bem comum tão bem representado na ideia de
República. Coube ao cineasta Fernando Meirelles fazer a aposta nesse viés.
Conhecido mundialmente pelo filme “Cidade de Deus” cujo final era o alerta do
cerco da violência e barbárie às crianças numa região onde o bem comum e a
República são deficitários, Meirelles dirigiu ou produziu outros filmes, como o
subestimado “360” e o maravilhoso “Jardineiro Fiel”, uma história de amor com
uma contundente crítica à indústria farmacêutica. Eis que o cineasta apostou em
um filme que em tese seria difícil, pois poderia se tornar uma peça teatral
filmada, mas conseguiu pela força da fotografia, pela habilidade da direção,
pelo poder da palavra e pelo carisma e maestria da dupla principal de atores
fazer um filme que repercute para o bem e para o mal. “Dois Papas” conta os
caminhos ziguezagueantes que aproximaram o alemão Bento XVI e o argentino
Francisco. Distante da ideia de santidade suprema o filme aposta na humanização
dos personagens históricos em um encontro fictício, mas com grande propriedade
pelos escritos, práticas e falas dos papas. Bento XVI sofre a marca da falta do
carisma, do passado simpático ao nazismo e a postura conservadora que não teve
pudores para eliminar as dissidências como a ligada à Teologia da Libertação.
Um homem de grande apuro intelectual e com sensibilidade musical que fez do
fortalecimento da Igreja Católica a sua vida, porém os escândalos que iam de
abusos sexuais à corrupção no Banco do Vaticano foram decisivos para a sua
renúncia. Por sua vez, o futuro Papa Francisco teve uma postura ambígua quanto
à ditadura argentina a ponto de ser atormentado por sua omissão na defesa de
companheiros de batina que tiveram uma postura de maior enfrentamento. Mas esse
mesmo homem é amigo de Dom Claudio Hummes, adota o nome de Francisco para se
lembrar do santo que fez o voto de pobreza e tem o católico (e jamais
comunista) Paulo Freire na sua biblioteca.
O filme tem um sopro iluminista.
A defesa do direito de fala do “outro” naquilo que se discorda. O debate como o
bom combate. Bento XVI de forma muito sutil é um condottieri da sua sucessão.
Sabe que a renovação da Igreja Católica passa pelo também alemão Max Weber que
trabalhou o tema do carisma. Eis o dilema de Ratzinger (Bento XVI): Bergoglio
(Francisco) como Papa vai ser a mudança-conservação ou conservação-mudança?
Anthony Hopkins imprimiu com maestria um tom para um personagem desprovido de
carisma ou de popularidade que se assemelha a um “meu malvado favorito”. A
perda da infância e adolescência com uma maturidade precoce; uma cegueira no
olho esquerdo; a sensação de traição. Um personagem que estava fazendo falta à
filmografia recente de Hopkins, que optou por filmes mais comerciais após os
anos 1990. Seu talento não acabou e foi reconhecido pela Academia de Cinema e a
indicação ao Oscar de ator coadjuvante.
Jonathan Pryce conseguiu uma
coincidência enriquecedora em sua carreira. Após ter feito um filme chamado “Brazil”,
anos depois fez um argentino quase mítico, o presidente Juan Perón. Nesse
filme, outro argentino, agora Jorge Bergoglio. Coube a esse extraordinário ator,
indicado ao Oscar de melhor ator, trazer dubiedade e tirar o ar simpático pelo
qual Francisco ficou bem marcado – ainda mais no Brasil, país que sediou o
encontro Mundial da Juventude Católica. Francisco tem contra si a corrente mais
conservadora da Igreja que teve como um dos líderes o próprio Ratzinger. A
insegurança quanto ao possível futuro cargo e o tema espinhoso do seu passado
marcam a interpretação de Pryce.
Diálogos que começam com um
estranhamento acabam por ajustar uma característica da sociedade brasileira,
segundo um dos pais do Pensamento Social brasileiro, um “equilíbrio dos opostos”.
O Brasil é uma aposta do filme. Alemanha e Argentina fizeram a final da Copa do
Mundo no Rio de Janeiro e teve a audiência de ambos os líderes. Um filme com
essa marca acaba por um lado fazer um ataque ao “Porta dos Fundos” (cuja
temática acerca da religião é recorrente da mesma forma que se opõe a certos
discursos identitários como o feminismo, algo que seus detratores talvez não
saibam e que combateram a Netflix que disponibiliza um grande acervo de filmes
cristãos e tem a clássica sátira sobre os Evangelhos que é “A vida de Brian”,
que não trouxe a menor repercussão nos meios radicais religiosos).
Esse ataque é a tônica da
intolerância que não é dos tempos atuais. Coube ao comunista e ateu Jorge Amado,
na condição de deputado constituinte de 1946, propor vitoriosamente como
cláusula pétrea a liberdade religiosa e de culto por conta de prisões aos
líderes de religiões afro-brasileiras e dos ataques que depredavam as igrejas evangélicas no Nordeste que eram comandados
por católicos intolerantes. A lei surge de uma necessidade. O silêncio das
Igrejas quanto ao ataque segue a contramão da obviedade: Jesus Cristo não
precisa ser defendido pelos humanos, mas o contrário.
O filme “Dois Papas” – dirigido por
um brasileiro ateu - é a relação
dialógica de diferentes, onde o Brasil pode oferecer para o mundo laico e
religioso o quanto o futebol e nossa cultura em geral podem agregar para os
valores democráticos e ecumênicos. É na base do ecumenismo que a religião e as
igrejas crescem. Quando Bento XVI vem a público desautorizar um livro que um
cardeal conservador disse que foi escrito com ele e cujo teor critica uma das
últimas decisões tomadas pelo Papa Francisco no Sínodo da Amazônia mostra o
quanto o filme acertou em sua proposta. O equilíbrio, mesmo que de opostos.
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